sábado, 19 de junho de 2010

Descobri-me muito egoísta, com a morte de Saramago


"Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, nao vamos a parte nenhuma."

Porque por mim ele não se iria com 87, mas poderia ficar até uns 107, espremendo até o fim de um fiozinho de vida esse formidável talento de escrever que ele tinha. Embora tudo que eu tivesse lido dele só me deixasse mais pessimista em relação à espécie humana e sem nenhum conforto espiritual, e ainda precisasse abstrair aquele jeito de ele enxergar as coisas com excessiva e assustadora lucidez, aquilo que em poesia se chama melopeia é que mais me viciava nos textos dele. Certas pessoas não deviam morrer nunca, não deviam de.

Blog do José Saramago: http://caderno.josesaramago.org

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Um certo ateliê na Brigadeiro...

Quando iniciei as aulas de dança do ventre em um studio bem pequeno no bairro onde então morava, mas que tinha professores bem legais, de jazz, flamenco etc., perguntei para a minha primeira prof de DV, a Dívia Dy, onde comprar roupas para aulas e acessórios, porque nem me passava pela cabeça comprar um figurino completo, como muita gente faz e eu sempre me pergunto por que, se estão começando, vão dançar onde e com que repertório (talvez num baile a fantasia?). Ainda bem que estudar outras danças dá uma noção pra gente de que é necessário um mínimo de vocabulário antes de sair por aí, mas enfim cada um tem uma viagem pessoal particular. A prof sem pestanejar me indicou a 25 de março, um outlet na Vila Mariana e o Atelier da Tia Cecy.
Eu comprava meus colants e roupas pra dança na Galeria Ouro Fino, e não me lembrava de ter visto nada ligado à DV por lá.
Por acaso esse tal atelier da Tia Cecy ficava próximo da editora em que eu trabalhava, nos arredores da Bela Vista. Na avenida Brigadeiro Luís Antônio, 1156, entrei no corredor de um labirinto que ia se desdobrando em várias lojinhas de produtos diversos. Lá dentro, não havia muita iluminação e isso dava um clima quase mágico ao lugar. Com tecidos, panôs , roupas e uma infinidade de lenços pendurados por todos os lados. Eu achava que o nome era apenas uma marca, mas a tia Cecy em pessoa estava lá e perguntou "Se eu me importava que ela mesma me atendesse porque a mocinha vendedora estava ocupada com o estoque." Imagina se eu ia me importar. E ela foi tão atenciosa mesmo sabendo que eu compraria apenas um lencinho de quadril e não aquelas roupas glam, luscious que ela vendia. Havia uma delas, vestindo uma orgulhosa manequim de loja, era um vestido, bordado de pequenas perolinhas coral dos pés à cabeça, porque havia mesmo um adereço de cabeça, como uma malha-cota, parecido com uma que a Mona Said usou num filme para dançar um... saidi (vídeo que eu amo de paixão, só que a pessoa que postou não permite compartilhar, sei lá por quê). Fiquei me perguntando quando é que eu teria punch para dançar com uma roupa daquelas, que era uma pequena fortuna, ou seja, pra bailarinas que já estavam no mercado, se jogando por aí, tipo a Soraia Zaied ou outras.

E tudo que eu achava mais bonito era igualmente muito caro (para os meus padrões), ao que ela respondia sempre calma, com uma expressão de bondade "que esse lenço era importado, mas que havia um outro mais em conta." As roupas eram todas de sonho, os adornos com combinações de cores em que o verde-água era inexplicavelmente mais verde-água que os outros.
Não era muito dada a pechinchas, embora inserida na comunidade egípcia em São Paulo, ser casada com egípcio e viajar com frequência ao Egito. Tinha muita consciência da qualidade do seu trabalho.
Diz a lenda que ela dançava e até deu aulas a Soraia.
Saí de lá feliz com meu lencinho de quadril preto bordado com ramos de flores, que dá pra usar também como adereço de flamenco, por causa das longas franjas. Até hoje não vi nenhum igual nem parecido.

Tia Cecy faleceu semana passada e fazia parte do universo bellydancer de São Paulo. Creio que não há profissional ou diletante que tenha um certo tempo de estrada por aqui e não a tenha conhecido e a seu importante trabalho, ainda que de passagem. O que é a bailarina sem o figurino? Ainda uma bailarina decerto, porém a roupa faz parte do imaginário e desse ritual de transportar o público a um mundo onírico e onde mais a imaginação o levar.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Patadas flamencas - Carmem Amaya



Hoje acordei saudosa do flamenco. E não sabendo muito bem o que fazer com isso, resolvi assistir a um vídeo da Carmem Amaya.

O estilo de dançar de Carmem Amaya (1913-1963) personificava a alma do flamenco, e chegava a ser masculinizado se comparado ao flamenco de Corte, dos bailes, dos movimentos elegantes e estilizados dos shows que costumamos ver atualmente, com muita influência do balé clássico. Gostava de dançar de calças, algo não muito comum para as mulheres de sua época bailarem flamenco. Nas suas apresentações, a técnica era colocada a serviço da paixão pela arte, chegava a ficar fora de si e se descabelar e até perder as peinetas do penteado, possuída por "el duende", nome dado pelos flamencos a uma espécie de transe em que entra o bailarino quando põe toda a emoção ao pisar num tablado. Para atingir esse estado, infelizmente não existe técnica, dizem eles, ou se tem ou não se tem.

Para uma biografia mais completa ver aqui.

João Cabral de Melo Neto, em sua fase espanhola, escreveu sobre ela:

Carmem Amaya, de Triana

As vizinhas diziam todas:
"bendita madre, que bailadora!"

Então botaram-me na escola:
era sevilhanas a toda hora.

Sevilhanas são para as damas,
para as niñas bien, não têm chama.

Aprendem-nas para na Feira
dançá-las entre si nas casetas.

Dançá-las dentro das famílias
como na Feira de Abril, em Sevilha.

"Nunca pensei em ser dama, não:
pois toquei fogo na lição."

Dançar não é coisa aprendida,
mas o aprender-se cada dia.

Assim é que entendo a lição;
sabê-la, mas segui-la, não.

Fugir do que ela faz de gesso,
dançá-la, mas sempre do avesso.

Tinha então de ganhar a vida,
e como eu, mais de mil havia.

Onde ir buscar esse sotaque
que entre dez mil me destacasse

e fizesse dizer: - Eis a Amaya,
eis seu bailado, vivo e em chaga."

"Fui numa tarde à Maestranza,
vi Pepe Luís (toureio e dança)

com ele aprendi que a morte
é que faz o sotaque mais forte,

e que não traz mal a quem a toque:
pois raro acede a quem a invoque.

Por isso, que pus no baile
a morte e seu arrepiar-se.

Supersticiosa, sou cigana,
vivo muito bem com a tal dama:

Ela faz mais denso o meu gesto
e só virá em meu dia certo."

terça-feira, 1 de junho de 2010

Como seria a sua dança se...



Como seria a sua dança se você fosse pra galera quase todos os dias? Sim, digo com isso dançar quase todos os dias com escalas em fins de semana e feriados, faça frio, com chuva ou calor.
Então pense naquela dança que vc preparou e escolheu a música com cuidado, estudou e preparou a coreo e teve dias e até semanas para escolher entre uma ou outra que já tinha preparado há tempos, pra dançar sazonalmente, num chazinho na escola aqui, num bazar beneficente ali, num espetáculo de final de ano num teatro, ou num aniversário familiar ou outro evento para o qual foi convidada por amigos. Pense na possibilidade de não poder repeti-la na semana seguinte no mesmo lugar, porque o público é assíduo e vai ver vc com a mesma roupa e a mesma música e a mesma coreo. É claro que vc poderá repeti-la... quando for dançar em outro lugar em que estiver na escala.
Estou falando obviamente das bailarinas profissionais que fazem dos shows e aulas o seu principal meio de vida, e não de bailarinas ou, segundo o sindicato, de dançarinas (caso no qual me enquadro) que têm outro trabalho como sustento principal e não dependem dos shows para pagar as contas. Não falo também de casos em que a pessoa tem os pais, o marido, ou namorado que as apóiam ou bancam integralmente. Falo é daquelas que se sustentam e têm outros a quem sustentar com a dança.
É claro que é uma escolha que requer coragem, porque viver de arte por aqui não é tarefa fácil. Além de ser uma "arte", como muitos falam, trata-se de um trabalho, como outro qualquer. Vamos ver se não é? A gente faz curso de soumbóti e aprende que uma das origens da DV está nas gawazee, ou nas ouled nails, que ficavam nas feiras abertas dançando, cantando, tocando snujs, muitas com os seios de fora, e sabe-se lá o que mais, dependendo do lugar, em troca de algumas moedas para comprar comida. OK, como é que a gente analisaria essas mulheres? Como poderíamos julgá-las, quer esteticamente, quer do ponto de vista artístico, quer do ponto de vista moral? É claro que a gente vê a iconografia e acha tudo lindo e idealizado, porque afinal de contas elas já estão no passado, mortinhas e enterradas, não é mesmo? Que bom pra elas, porque assim não correm o risco de encontrar suas imagens por aí expostas à falação alheia.
Tudo bem que é um risco que se corre. Quem está presente em qualquer tipo de mídia está sujeito análises e críticas diversas. Aí neguinho vai, pega um recorte do seu trabalho em 1900 e lá vai bolinha, quando desde a roupa até a coreo vc queria eliminar da face da terra, e "analisa a sua performance sob numerosos e profundos pontos de vista". E é claro que aquilo não corresponde mais ao seu trabalho atual, mas como pode o crítico saber se ele nunca te viu ao vivo, e se ele mora lá em Piraporinha da Serra e vc aqui na Barra Funda, né mesm? Mas o mais curioso, por algum inexplicável fenômeno artístico, as bailarinas de Piraporinha (ou localidade X em que residem os críticos) são todas uns primores, e só merecem sarrafo as que residem em Barra Funda, Brás, Bexiga, Cairo... lugares longínquos, enfim. Mas o que importa é criticar bem para criticar sempre. Depois, é tão bacana ser malvadinho, né? Pelo menos na 8a. série a gente pensava assim...
Mas o que me espanta é a falta de bom senso que gente do meio tem ao criticar. Gente, isso é uma coisa que eu jamais de ma vie faria: "Sabe, a fulana lá de Goiás, do Recife, ou do Paraná? Que horror, como dança mal, né?" E a tal fulana, que nem sabe da existência de quem falou dela, continua levando a sua vidinha de sempre, com os shows nacionais, e internacionais diga-se de passagem, as aulas, os works, a beleza dela, o charme dela (coisas que independem de biotipo, a pessoa pode ser gorda, magra, ou gostosa, ou mais ou menos e ter tudo isso, portanto não vale usar seu biotipo para descontar nos outros os próprios recalques), enfim, tudo o que o Mercado atual exige e a pessoa que criticou não teve nem nunca terá. Não porque não possa fazê-lo, mas porque não se empenha nisso o suficiente, e porque esse não é o seu TRABALHO, e no fundo tem inveja de quem o faz. Fica tão claro! A pessoa criticada pode até quem sabe ser sua companheira de lado num work internacional qualquer da vida. Esse mundo é tao pequeno!
Gente, se pra afogar minhas mágoas de achar que não tenho o perfil, nem o biotipo, nem o profissionalismo, nem a técnica de mil e poucas pessoas, teria desistido de dançar há muito. Adianta eu ficar falando mal de tudo quanto não me agrada por aí só porque o outro não é o meu espelho ou porque não compreendo as razões do trabalho alheio, por desconhecimento, imaturidade ou sei lá por que mais?
Tenho em mente que tomei essa opção há muito tempo, a de não ir pra galera geral. Poderia muito bem tê-lo feito, mas tomei outro rumo, e ninguém tem culpa pelo fato de eu não estar sob holofotes sete dias da semana.
Eu ou você, que temos um trabalho em que o fazemos sentadinhas, em escritório, em casa, ou nas firmas da vida, podemos até trabalhar em condições adversas, por mais que saiamos a campo vez ou outra, levantemos da mesa vez ou outra, trata-se de desk job. Podemos também tomar nosso analgésico e dar um tombadinha na mesa, que receberemos até olhares caridosos dos colegas. "Tadinha, não está bem".
Há bares que suspendem por tempo indeterminado a bailarina se ela precisar faltar e não arrumar uma substituta. Pois então elas têm de dançar com cólicas mesmo senão quiserem perder o emprego. Claro que ninguém quer saber dos bastidores, a gente quer mais é que os artistas brilhem, não é mesmo? Se a gente parar de olhar nosso umbiguinho e mirar com realismo esse trabalho não vai ter coragem de sair por aí malhando os outros, não vai mesmo. É fácil falar mal quando não se tem a manha de encarar esse batente, o da "arte" full time.

Por isso esse texto é uma homenagem pras minas que vão pra galera de segunda a domingo. Em bares, danceterias, casas noturnas, feiras livres, de promoções, em teatros, cafés, com garçons andando em torno, gente jantando, gente apreciando, aplaudindo, nem ligando, se divertindo, sonhando, curtindo...
E até mesmo para aqueles de quem eu não curta tanto assim o trabalho por variados motivos. Esses também merecem todo o meu respeito.